António Vasconcelos Lapa e os Espaços Sagrados

26 April 2018

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António Vasconcelos Lapa e os Espaços Sagrados
Richard Zimler


Os artistas que se empenham em explorar a sua vida e o mundo que os rodeia invariavelmente criam exposições em que nos oferecem um verdadeiro mapa ou um diagrama da sua paisagem interior. Os seus traumas, alegrias, medos, desejos e triunfos revelam-se nas suas criações, e curiosamente por vezes mesmo contra a sua vontade. Manifestamente, tudo isso contribui para dar forma às expressões dos rostos das personagens que habitam as suas telas e esculturas, mas pode também influenciar elementos tão subtis como a combinação de cores e a organização do espaço.

Nesta perspetiva, o trabalho de tais artistas pode ser visto como uma tentativa para compreenderem precisamente como atingiram o seu atual estado emocional e espiritual, assim como uma tentativa para comunicar aquilo que compreenderam (e desvendaram!) sobre si próprios. Nas melhores de tais obras, este processo criativo inclui uma forte componente de espontaneidade, pois que, ao dar livre curso à imaginação, estes artistas abrem caminho a que imagens e formas imprevisíveis acedam às suas mãos, pincéis ou ferramentas. Desse modo, não só conseguem criar representações daquilo que lhes vai no pensamento consciente, mas também de uma boa parte de tudo o que existe escondido e aninhado nos seus sonhos. Muitas vezes, isso manifesta-se através de um foco intenso nas obsessões desses artistas — naquilo que ainda os possa surpreender em si próprios ou que exige ser examinado de mais perto. Ou, por outras palavras, tendem a focar-se nos mistérios que se insinuam nas suas fantasias e escapam ao entendimento que têm de si próprios e do universo.


A “Viagem ao Barroco” de António Vasconcelos Lapa dá-nos acesso a uma visão da paisagem interior do artista, precisamente ao estudarmos e apreciarmos o modo como ele transformou o Jardim Botânico da Ajuda. Curiosamente, o que descobrimos confirma e simultaneamente questiona o título que deu à exposição. Porquê? Muito embora as peças cerâmicas por ele criadas, vivamente imaginativas e intensamente elaboradas, reflitam as sensibilidades e tendências barrocas do Portugal a que pertence, parecem ser também, a um nível mais profundo, um modo de Vasconcelos Lapa explorar um aspeto que é ao mesmo tempo mais recôndito e mais interessante: o espaço sagrado. E de lhe dar um toque muito pessoal…
Tanto na tradição ocidental como oriental, os espaços sagrados são por norma vigiados por guardas ferozes e mesmo monstruosos que têm por missão manter à distância os intrusos ou aqueles que têm ainda de ser iniciados. Por exemplo, o Livro do Génesis indica-nos que Deus colocou criaturas aterrorizadoras à entrada do Jardim do Éden com a missão de impedir que Adão e Eva e toda a sua progénie voltassem a entrar no Paraíso.
Na tradição oriental, os templos e outros lugares sagrados estão quase sempre à guarda de demónios, de guerreiros, ou de criaturas mitológicas. No Sri Lanka e em muitos outros países budistas, por exemplo, seres assustadores conhecidos como Nagas — humanos da cintura para cima, cobra da cintura para baixo — guardam a bem dizer todos os templos. E por toda a China é costume verem-se dragões em cima dos muros e dos telhados dos edifícios destinados a celebrações religiosas.
Porquê forçar os visitantes a confrontarem-se com tais criaturas? Porque em quase todas as tradições religiosas elas servem para fazer lembrar que o espaço onde se vai entrar é diferente e perigoso. Afinal, o contacto com poderes superiores ou a imersão numa realidade transcendente implica sair de uma esfera familiar e abandonar a identidade de todos os dias. Em suma, essas criaturas estão a dizer: entras aqui por tua conta e risco, pois o que vais encontrar aqui dentro pode desorientar-te e talvez mesmo obrigar-te a defrontar sentimentos de loucura e terror…
Em consonância com estas tradições, o visitante de “Viagem ao Barroco” começa por ser acolhido pelas cabeças de criaturas de grandes presas, terríveis e multicolores, que guardam a escadaria que desce para o vasto jardim. Serão aqueles seres semelhantes a lobos variações de Cérbero, o cão de três cabeças que na mitologia grega guardava a porta do Inferno? Vasconcelos Lapa haveria de preferir que fosse cada visitante a decidir sobre a natureza de tais criaturas, e na verdade criou uma série de animais híbridos que desafiam qualquer classificação imediata. O mais assustador assemelha-se a uma combinação de crocodilo e pinguim!
Os visitantes que desafiarem as advertências destas sentinelas de ar ameaçador e que entrem na parte principal do jardim darão por si no espaço sagrado do artista: um jardim magnífico, verdejante, semeado de volumosas construções espectacularmente coloridas e exuberantes, que Vasconcelos Lapa descreve como templos. Alguns deste templos esculpidos têm formas orgânicas e braços, que, a mim, me dão a impressão de estranhas medusas cintilantes.


Vasconcelos Lapa diz que a criação destas construções extraordinariamente orgânicas foi influenciada por uma visita à Birmânia, onde os templos budistas são profusamente decorados, muitas vezes com ouro. Na Birmânia, essas construções religiosas são também quase sempre guardadas por Chinthe — criaturas semelhantes a leões veneradas pelos locais.
Na minha perspetiva, aquilo que Lapa fez nesta exposição foi lembrar-nos que os espaços sagrados existem, mesmo num mundo regulado por telemóveis, computadores portáteis e redes sociais, e que temos a oportunidade de entrar em contacto com eles praticamente a todo o momento — ou mesmo de os criarmos nós próprios! Vendo-a como um diagrama do espírito do artista, acredito que esta exposição mostra que Lapa anseia por tais encontros e mesmo que por vezes talvez se sinta privado de transcendência no Portugal dos nossos dias. A não ser assim, porquê então criar templos estranhamente fascinantes inspirados em locais de culto budistas, distribuindo-os à volta de um jardim em Lisboa e convidando visitantes para que os venham ver?

Ao fazer este espaço sagrado tão colorido e atraente, Vasconcelos Lapa está ao mesmo tempo a subverter também de uma forma inteligente as tradições ocidentais e orientais. Este lugar sagrado — este jardim — não é um lugar onde espreitem perigos ocultos. Pelo contrário, há nele uma euforia de cor e de deleite visual — sendo divertido também. Não só temos variadas versões da mais humilde das criaturas — o caracol — transformadas em guias brilhantes e chamativos que nos conduzem pela escadaria central, como temos também alegres e sexualizados aristocratas feitos de azulejos que nos saudam em vários sítios espalhados por todo o jardim.

E ainda assim, ao criar um espaço tão convidativo e encantador, Lapa pode muito bem ter criado um espaço secretamente perigoso, afinal. É possivel que, através da sua beleza cintilante, “Viagem ao Barroco” esteja a incitar-nos a largar o nosso telemóvel e o nosso Facebook por algum tempo, para descobrirmos as ocasiões de transcendência que nos rodeiam. Ou, por outras palavras, talvez o perigo da expressiva e fascinante exposição de Vasconcelos Lapa esteja no desafio que ela nos lança para que nos deixemos cativar pelo que há de sagrado e de mais misterioso dentro de nós próprios.

Richard Zimler