Narrativas diferentes sobre a morte (de Alexandre Quintanilha)
Narrativas diferentes sobre a morte
Alexandre Quintanilha
“Neste mundo nada é garantido, exceto a morte e os impostos”
… in this world, nothing can be said to be certain, except death and taxes.
é uma das frases mais conhecidas e irónicas de Benjamin Franklin.
Todos morremos. Há pouco mais dum século, o nosso tempo médio de vida andava pelos 40 anos. Hoje, em muitos Países, incluindo Portugal, mais do que duplicamos esse valor, e há quem pense que possamos alcançar os 100 anos nas próximas décadas. Esta evolução tem claramente a ver com os avanços científicos, tecnológicos e sociais das nossas sociedades. Lá vai o tempo em que uma pneumonia era quase sempre mortal, ou em que os que estavam próximos do fim eram simplesmente abandonados à sua sorte.
Para os biólogos que estudam a evolução, depois de nos reproduzirmos e de garantirmos que os nossos descendentes sobrevivem sem a nossa ajuda, deixamos de ser úteis para a espécie. Mas as comunidades humanas aprenderam, felizmente, a valorizar mais do que a simples reprodução. Hoje, reconhecemos que as sociedades são tanto mais ricas e fecundas quanto mais forem capazes de construir ambientes promotores de capacidades como o amor, a curiosidade, a imaginação, a compaixão, a partilha e a inovação, para os seus cidadãos. Capacidades que foram conquistadas ao longo de séculos em lutas árduas e sangrentas pela nossa liberdade e autonomia (não só política, mas também religiosa, social e pessoal). Liberdade e autonomia essas que continuam frágeis, porque, nem sempre essa valorização do “outro” é valorizada e retribuída.
Chegamos a uma situação em que a evolução do conhecimento, nas ciências naturais, sociais e humanas, não se limitou a dar-nos mais anos de vida; deu-nos também, frequentemente a capacidade de os usufruir física, emocional e intelectualmente. Infelizmente, nem sempre estes anos adicionais de vida são acompanhados da qualidade desejada.
E é sobre esta questão que gostaria de me debruçar. O que acontece quando alguém tem a consciência clara de que a perda de autoestima e dignidade assim como o sofrimento físico e psicológico que o esperam, se irão acentuar nas semanas/meses/anos de vida de que possa vir ainda a usufruir?
Todos conhecemos histórias dramáticas sobre situações, ou que acompanhámos pessoalmente, ou de que tivemos conhecimento detalhado. E todos nós “usamos” essas histórias para justificarmos a nossa posição neste contexto. Se para uns, a resposta são os cuidados paliativos, para outros, o desejo é o de por fim rapidamente a esse sofrimento.
Estou perfeitamente consciente que, neste contexto, o diálogo entre aqueles que consideram a vida humana como uma “dádiva” e os que, pelo contrário olham para a vida humana como um processo de construção e consolidação individual, torna-se difícil, senão impossível. No debate, focamos a nossa atenção sobre o que fortalece a nossa posição/convicção e ignoramos o resto. Uns debruçam-se sobre o conceito de “obstinação terapêutica”, enquanto que outros sobre a noção da “prepotência da autonomia”.
Os que defendem os cuidados paliativos afirmam que em situações de grande fragilidade, é relativamente fácil influenciar/convencer a pessoa de que não vale mesmo a pena fazer mais nada. Curiosamente este argumento é verdadeiro também para quem deseja convencer a pessoa exatamente do contrário.
Formas diferentes de terminarmos a nossa vida se assim o desejarmos, estão disponíveis. Mas são quase sempre decisões e ações solitárias e frequentemente angustiantes. Continua a ser punível na lei a assistência por parte de outrem, em particular por um profissional de saúde, ao suicídio de alguém que o tenha solicitado repetidamente enquanto consciente. E é esta, na minha opinião, a questão principal em discussão no debate sobre a morte assistida.
Invoca-se a noção de que é o medo da dor insuportável que faz com que
alguém queira terminar rapidamente o seu sofrimento, e que a morte não é
solução, pois existem muitas formas de controlar a dor. Mas os efeitos
secundários das elevadas doses necessárias destes fármacos, são por vezes
tão intoleráveis como a dor que tentam controlar. E é perfeitamente
concebível que para muitos (em que eu me incluo), não é só a dor física
que é intolerável. É também a ideia de que a “quantidade de vida” adicional
não compensa a “qualidade de vida” perdida. E suspeito que quanto mais
rica tiver sido essa “qualidade de vida” de alguém, menos disposta estará a
valorizar semanas ou meses de vida adicionais. Quando começamos a
sentir que a nossa continuada existência deixou de ter qualquer relação com
as experiências físicas, racionais ou emocionais que mais valorizamos, e
que sentimos a nossa autoestima cada vez mais fragilizada, o fim parece
perfeitamente razoável e até desejável para muitos de nós. Pensar desta
forma não é nem aberrante, nem patológico.
E também há, como tão claramente descrito por Philippe Bataille no livro de 2012: À la Vie, À la Mort, quem receie que tendo entrado nos cuidados paliativos, depois não consiga sair, se assim o desejar.
Outro conceito é o de que os profissionais de saúde devem tratar, curar se possível e acompanhar os doentes, nunca matar ou ajudar a morrer. O que faz todo o sentido e deve continuar a ser o seu principal objectivo. Mas só quem está muito mal informado ou se recusa a ver a realidade é que não tem conhecimento de inúmeros casos de ajuda, por profissionais de saúde, a doentes perto do fim que querem acelerar a sua morte. Tudo feito às escondidas, à margem da lei, com enormes riscos de denúncia e com consequências profissionais gravíssimas. Não seria muito mais honesto evitar ao máximo, ou mesmo acabar com esta situação?
Ainda outro argumento (o do slippery slope) é o de que os países onde se dará assistência médica aos que querem morrer, passarão a ser centros mundiais de morte assistida. Nenhuma das poucas experiências que existem neste domínio, tanto nos EUA como na Europa comprova essa afirmação. E todas elas mostram que, onde é legal, o processo é longo, complexo e exigente – muito diferente do que se passa onde é criminalizado e por isso mesmo praticado às escondidas e sem qualquer controlo.
No passado recente, em Portugal, este mesmo argumento (o do slippery slope) foi usado e abusado no debate da estratégia para a toxicodependência e da interrupção voluntária da gravidez. Não só as previsões não se concretizaram, como toda a evidência recente mostra exatamente o contrário.
Uma das soluções sugeridas e que tem ganho alguma aceitação é a de não fazer nada para tentar alongar o tempo de vida que resta, quando a equipa médica decide que o paciente esta em fase terminal. Esta solução, em que se mantém o paciente com, ou por vezes até sem, a hidratação mínima necessária, e que pode durar dias ou semanas, é vista por muitos (onde eu me incluo) como cruel e insensível.
Por todas estas razões, e tantas outras que são sobejamente conhecidas, acho que a morte assistida deve ser legalizada e regulamentada, e que o processo seja o mais exigente e rigoroso possível para evitar ao máximo aquilo que hoje acontece muitas vezes sem qualquer supervisão.
Para mim, a qualidade e dignidade da minha vida e da minha autonomia, é muito mais importante que a “quantidade de vida” e suspeito que isso é verdade para muitos cidadãos. O dilema está em decidir quem deve ou pode dar a ajuda solicitada.
Gostava de terminar com uma observação que considero, no mínimo irónica. A história da humanidade está cheia de exemplos de pessoas que escolheram e/ou aceitaram morrer para não abdicarem das suas convicções, da sua “honra”, da sua “dignidade”, da sua “autonomia” ou da sua “verdade”. Estas pessoas são normalmente admiradas e até por vezes vistas como mártires. O debate em que estamos empenhados parece ignorar a ideia de que a forma como cada um quer morrer é provavelmente a decisão mais importante da sua vida.
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A nossa vida depende da vontade de outros; a nossa morte da nossa vontade própria.
La vie dépend de la volonté des autres, la mort de notre volonté propre.
Num excerto do livro sobre “Montaigne” de Stefan Zweig