Conto: "O lugar mais óbvio"
O lugar mais óbvio
tradução de José Lima
Mal chegámos a igreja de S. Gregory, a minha mãe disse-me que devia ir ver o meu irmão no caixão para que ficasse com a certeza de que ele estava morto. Sentou-me num banco da igreja e contou-me que durante anos depois do irmão dela ter morrido aconteciam-lhe coisas que a deixavam baralhada. «Às vezes via o Alan na rua, na praia, em Central Park, no metro... Era horrível. Depois, quando corria para ele, percebia que era apenas alguém parecido com ele». E acrescentava, com aspereza: «Às vezes nem isso. Todo aquele sofrimento, todos aqueles fantasmas, só por nunca ter visto o meu irmão morto».
– Mas eu não quero ver o Harold morto – disse eu – As pessoas não são todas iguais. Tu sentias essa necessidade, eu não.
– Mas tens de o ver! – disse ela em tom ameaçador – Já te disse que tens do o ver.
– Não. Já me basta ter vindo ao funeral.
– O funeral não é nada – escarneceu – É só o princípio!
– Não o vou ver. E não se fala mais nisso!
Mas a urna estava aberta e o nariz dele sobressaía como o bico de algum
pássaro. Disse para mim próprio que o que quer que ali estivesse não havia de se parecer com o Harold. Mas parecia. A não ser a textura; a cara parecia de cera polvilhada com up pó fino.
O funeral realizou-se a 17 de Maio de 1987. Desde essa data, nunca confundi ninguém na rua com Harold. Nem tão-pouco me apareceram fantasmas.
Em vez de ficar contente, como a minha mãe pensava que estava, sempre me senti desapontado com isso.
Mas numa coisa ela tinha razão: o funeral era só o princípio. Sempre que a visitava, ficava horas sentado no quarto que em miúdo tinha partilhado com o meu irmão. Às vezes, deitava-me de costas e ficava a olhar para o tecto e a pensar no que é que teria corrido mal. Como é que alguém de trinta anos apenas apanha uma doença fatal e acaba num cemitério nos arredores de Nova Iorque?
Nestas minhas idas a casa, passava a maior parte do tempo a visitar os sítios por onde o meu irmão costumava andar. Olhava sempre à volta, como que à espera de o ver.
– É melhor assim, podes crer – assegurou a minha mãe uma vez, uns dois anos
depois do funeral – Por isso deixa de te andares a torturar à espera.
– Às vezes não consigo lembrar-me de como ele era – repliquei. Ao reparar
no olhar céptico dela, acrescentei: – Não consigo. A sério. Desapareceu-me.
– Tens fotografias – observou ela.
Deixei o silêncio acumular-se entre nós, pois ambos sabíamos que eu estava a
falar de uma imagem interior, que se tinha dissipado.
Pegou-me nas mãos. «É assustador ficar face a face com um morto» disse ela.
– Está bem, mas um pequeno relance que fosse era bom.
Passaram mais seis anos. Há precisamente uma semana, acabei de escrever o meu segundo romance. Não é propriamente sobre o Harold, mas dá para se ler nas entrelinhas...
A noite passada, levantei-me para ir à casa de banho às três da madrugada. Acendi a luz. E ali estava ele a fitar-me do espelho por cima do lavatório. «Harold», disse eu, como se saudá-lo fosse a coisa mais natural do mundo.
Depois, comecei a ficar assustado; lembrei-me de que ele tinha morrido. Mas ali o tinha: o rosto magro, os olhos escuros penetrantes, o cabelo encaracolado.
Fitámo-nos mutuamente durante um longo momento; eu com todas as minhas buscas, e ele todo esse tempo ali escondido no lugar mais óbvio.