Apresentação do Livro de João Costa: Manifesto pelas Identidades e Famílias
Apresentação do livro de João Costa – Richard Zimler
Hesitei um pouco antes de aceitar o convite do João para apresentar o seu novo livro, Manifesto pelas Identidades e Famílias – Portugal Plural. Porquê? Porque vejo de forma muito pessoal os movimentos de todo o Ocidente que demonizam os imigrantes, as religiões além do cristianismo, as famílias não tradicionais e os LGBT. Tão pessoal que me é difícil discuti-los com serenidade. Fico transtornado e preocupado. E como não o ficar? Sou gay e imigrante em Portugal e sou judeu, por isso os autores de Identidade e Família declararam-me um perigo para os “verdadeiros” valores portugueses.
Ainda por cima, não acredito que uma família de um homem, uma mulher, 2 ou 3 filhos, um cão, dois carros e uma quinta no Douro seja um ideal ou algo que queira para mim. Se outra pessoa achar perfeita essa vida, tudo bem. Mas não a vejo como melhor ou mais “normal” do que duas mulheres criarem o filho biológico de uma delas ou dois homens criarem dois filhos adotivos ou um homem e uma mulher ateus criarem quatro filhos seus sem religião – ou uma mulher ou um homem decidirem não ter filhos.
Na verdade, acho que forçar as pessoas a viverem uma vida inautêntica – a usarem uma máscara em público e a esconderem os seus sonhos – é a coisa mais cruel que um governo ou um grupo de pessoas podem fazer a alguém. E sobretudo a um jovem. É algo que vivi, porque tive de viver no armário durante alguns anos. E, quando saí, perdi amigos e um emprego. E fui ostracizado por todos os outros alunos no programa do mestrado em Jornalismo da Universidade de Stanford, em 1982. E durante muitos anos perdi vendas de livros e contratos com editoras, porque as pessoas sobre as quais escrevia – pessoas com deficiência, LGBT, mães solteiras, cristãos-novos – não eram consideradas aceitáveis ou comercialmente viáveis pela maioria das editoras.
Por isso, admiro muito o João, por manter a sua compostura e ter a coragem de escrever este livro. Admiro-o por ser conciso, inteligente e inclusivo – e por colocar os seus ideais em prática na sua vida e no seu trabalho.
Agora, antes de falar sobre o conteúdo do livro, quero apenas ler três breves citações do livro Identidade e Família, de António Bagão Félix, Victor Gil, Pedro Afonso e Paulo Otero.
Acho que elas lhe darão uma ideia ainda melhor do motivo pelo qual a maneira de pensar deles me assusta. E por que razão me parece cruel.
Primeira citação:
“Devemos elevar o estatuto do casamento e dar-lhe a consagração de uma instituição. O casamento é, na verdade, a condição de base para filhos saudáveis. Ainda assim, o casamento não pode ser um fim em si mesmo – deve servir um objetivo maior, a preservação de Portugal.”
Segunda citação:
“O homem defende o povo, tal como a mulher defende a família. A igualdade de direitos da mulher traduz-se em ela ser tratada com a consideração elevada que merece nas áreas da vida que a natureza lhe atribui.”
Terceira citação:
“Há apenas duas possibilidades em Portugal: não se imagine que o povo se identificará sempre com o partido do centro, o partido dos compromissos; um dia votará por aqueles que predisseram de forma mais consistente a ruína do país e que procuraram evitar essa ruína. E esse partido ou vai ser de esquerda – o que nos conduzirá à destruição, à sovietização – ou então vai ser um partido de direita.”
Agora, confesso que menti. Estas citações que acabei de ler parecem excertos de Identidade e Família, mas não são. São de Adolf Hitler. A primeira citação é da sua autobiografia, Mein Kampf – A Minha Luta. A única alteração que fiz foi substituir a palavra “raça” pela palavra “Portugal” (“a preservação de Portugal”).
Na segunda citação não mudei nada. É de um discurso de Hitler de 1935.
Na terceira citação, mudei apenas duas palavras – substituí “bolchevismo” por “sovietização” e “Alemanha” por “Portugal”. É de um discurso de Hitler de 1922.
Agora, antes que alguém me acuse de pensar que os autores de Identidade e Família e o apresentador do livro, Pedro Passos Coelho, são nazis, deixe-me dizer claramente que não é esse o meu entendimento. Raramente penso em termos de rótulos, mas não acredito que sejam nazis. O que acredito e o que estas citações provam é que os autores e os seus apoiantes partilham uma perspectiva muito semelhante à de Hitler sobre o que constitui uma família ideal e a sua inerente superioridade moral. Além disso, partilham as noções de Hitler sobre os perigos que representa para a nossa sociedade qualquer pessoa que não concorde com essa ideologia ou não esteja disposta (ou não seja capaz) de criar o que considera uma família ideal.
Dado que as perspetivas de Hitler e dos autores de Família e Identidade são tão semelhantes, haverá aqui alguém confuso sobre a razão pela qual o seu manifesto me causa tanta repulsa? E porque penso que tudo isto nos deveria fazer temer pelo futuro da nossa jovem democracia em Portugal?
Uma última citação, desta vez de Jerry Falwell, um pastor protestante norte-americano já falecido que era de extrema direita. No auge da pandemia de sida, escreveu:
“A sida não é apenas um castigo de Deus para os homossexuais; é um castigo de Deus para uma sociedade que tolera os homossexuais.”
Menciono esta citação porque muito do que alguns ultraconservadores estão a fazer neste momento é tentar culpar as vítimas – culpar aqueles que têm sido tradicionalmente excluídos das universidades e dos empregos bem remunerados, dos meios de comunicação e dos governos.
Há uma coisa que aprendi ao longo da vida e que todos precisamos de ter em mente: devemos sempre lutar contra as pessoas que insistem em culpar as vítimas.
E, agora, o livro do João:
Está dividido em dez capítulos, que explicam a sua perspectiva sobre temas como:
o multiculturalismo
a ética cristã
a inclusão
o privilégio de alguns e marginalização de outros
a repressão social
a educação sexual
e o papel das escolas na criação de seres humanos empáticos e capazes de pensar por si próprios.
O Manifesto pelas Identidades e Famílias é um livro ponderado, inteligente e abrangente. Penso que é um livro importante, especialmente numa altura em que as noções da extrema-direita sobre moralidade e teorias da conspiração estão a ganhar apoio em quase todo o mundo ocidental. E, para ser franco, numa altura em que muitas pessoas ainda subscrevem a ideia, por exemplo, de que as mulheres devem ficar em casa e só podem obter realização tendo filhos. Ou a ideia de que as pessoas LGBT podem ser aceites desde que permaneçam no armário.
Infelizmente, muitas pessoas ainda acreditam que a melhor forma de criar a sociedade ideal é nunca evoluir e crescer como seres humanos. Valorizam a estagnação, o medo do outro e a mediocridade.
Vou começar a minha apresentação pelo que mais gostei no seu novo livro. E pode surpreender o João.
O que mais admiro e respeito é o seu envolvimento pessoal nestas questões. Ao explicar a evolução da sua perspetiva sobre os temas do livro, o João refere-se frequentemente à sua própria infância e às suas experiências mais marcantes. Isso torna o texto envolvente e poderoso – e totalmente dele.
Já disse por vezes em entrevistas que a doença que mais gostaria de curar em Portugal – e que tenho tentado arduamente tratar nos meus livros infantis – é o medo da opinião dos outros. Assim, dada a predominância desta doença no nosso país, foi precisa coragem para o João falar da sua formação como político e, mais importante ainda, como ser humano. Obrigado, João, por demonstrar essa coragem.
Agora vou ler alguns trechos que darão uma ideia do estilo de escrita envolvente e das afirmações mais importantes. Em alguns casos, condensei um pouco o texto para não ultrapassar o limite da minha intervenção.
Do primeiro capítulo, Não Voltaremos Atrás (p. 13):
Cresci em liberdade e consciente do privilégio. Cresci ao lado do bairro onde a água tardou a chegar. Cresci na escola dos filhos dos desempregados dos anos 80. Cresci no conhecimento da mulher que aparecia com a cara esmurrada e calava, porque “ele” lá sabia. Cresci na amizade com o que não pôde continuar a estudar, porque o dinheiro foi sempre curto. Cresci com as amigas da escola que se viram mães quando ainda só deviam ser filhas. Cresci com o silêncio sofredor daquele amigo que só via o suicídio como saída, porque não podia amar quem queria.
Cresci também a ver um Portugal que se transformou. Uma escola que chegou cada vez a mais. A conhecer e a formar os primeiros licenciados de tantas famílias. A saber que o saneamento básico não é só para alguns bairros.
Não voltaremos atrás. Não estamos na mesma. Estamos melhor, muito melhor, são muitos os que estão melhor… O discurso da degradação, da teoria do caos, o passadismo e saudosismo são cobardes. São a procura da manutenção do privilégio, são o medo de aceitar a diferença e de deixar que outros tenham os direitos que temos. Seja o direito de viver, seja o direito de pensar, seja o direito de expressar, seja o direito de amar.
Acho que o último parágrafo é crucial, porque o que Passos Coelho e os seus amigos oferecem a Portugal é a manutenção do privilégio e a exclusão de todos aqueles que têm sido tradicionalmente oprimidos.
O João diz isso com impressionante força na página 18 ao falar das forças reacionárias em Portugal:
Sabemos aquilo que pretendem. Sabemos para onde vão. Sabemos em quem se inspiram. Sabemos que o alt-right americano vos sorri. Sabemos o que vos move: a sociedade elitizada e privilegiada, em que a conquista da liberdade incomoda e assusta quem a tem. Conhecemos a cobardia e o medo, porque incluir e aceitar dá trabalho. Trabalho intelectual. É preciso pensar, estudar e conhecer o outro. Trabalho emocional. É preciso abrir-se ao exercício da empatia. A liberdade não é preguiçosa. A inteligência não é preguiçosa. A exclusão é fácil. Não requer esforço nem compromisso.
Na página 16, o João também menciona um grupo de pessoas que me são especialmente queridas. Amiúde esquecidas, infelizmente:
As pessoas com deficiência travam lutas desiguais. Porque não têm acesso, porque as barreiras não são removidas, porque são olhadas a partir da incapacidade e não com o olhar do tudo que são e dão. Porque é impossível. Porque falta qualquer coisa. Porque é caro. Porque o “sistema” ainda não está preparado. Porque não queremos. Mas tem sido cada vez mais possível, porque tem havido aqueles que querem, que não se calaram nem se resignaram.
Na página 27, o autor aborda a necessidade de vivermos aquilo a que chamo vida autêntica – sem máscara, sem vida dupla, sem medo de sermos chantageados, sem necessidade de escondermos o que há de melhor em nós, sem termos de negar o nosso amor...
Hoje somos um Portugal plural. Somos o Portugal onde já não nos vestimos todos da mesma forma. Onde a indumentária não é formatada, onde a tradição dos diferentes países nos convida a conhecer novas cores e tecidos.
Somos o Portugal onde há cristãos, judeus, muçulmanos, hindus, budistas, agnósticos, ateus, em que não tolhemos a liberdade mais profunda, a de acreditar. Em que a descrença não é vergonha, em que os diferentes ritos convivem, em que as diferentes expressões da fé têm lugar. Hoje somos um Portugal onde dois homens ou duas mulheres podem passear na rua e beijar-se, porque se amam. Porque não precisam de esconder o amor. Em que o casal que já não consegue viver em amor pode divorciar-se, sem sentir a culpa da falha perante uma sociedade que já se contentou no testemunho silencioso de relações frustradas.
Em contraste com esta visão das identidades, temos o ponto de vista dos autores de Identidade e Família. Mas o João questiona o que aconteceria se conseguissem desenvolver um maior espírito de empatia. Da página 34:
A história do amor, para uns, é a vivência do sofrimento mais silencioso, porque um direito aparentemente tão simples – o de dizer a alguém que se ama – é negado e castrado, qualificado de perverso ou imoral. E se esses “defensores da família tradicional” tivessem, por uns dias, a experiência da vida no outro lado?
Imagine-se o rapaz que descobre a atração pelas raparigas e que, nos primeiros anos dessa experiência, se força a não sentir essa atração, porque não pode ser, porque não se aceita, porque é humilhado no gozo e na chacota do outro. Imagine-se o namorado que não pode ir a casa da namorada porque a família dela não aceita como natural a sua relação. Estes arautos da “família tradicional” não sabem nada sobre o amor. Ignoram a naturalidade do sentimento. Acham que a orientação sexual é uma escolha consciente, apesar de nunca terem descoberto o momento da escolha da sua heterossexualidade. Os da tradição vivem felizes com o silêncio dos outros, que é tantas vezes o seu próprio segredo. Assumem como boa a prática da escuridão, guardam como um tesouro o sofrimento daqueles para quem não querem olhar.
O autor salienta então o que considero um ponto muito importante… E ao qual já fiz uma breve referência. Que a direita reacionária está a tentar desesperadamente tornar-se vítima. Da página 39:
Afinal, quem precisa de defesa? A família que já tem os direitos todos ou todos aqueles que ainda enfrentam as barreiras da aceitação, o preconceito da inadequação ou o desprezo de quem só quer para os outros o que tem para si? Não, a família dita tradicional não está sob ataque. A família dita tradicional não precisa de se esconder, não é objeto de apoucamento. São todas as outras as que precisam de defesa.
É a mulher que se separa e que enfrenta a crítica da família, porque não lhes fica bem conceber que ela tem o direito de ser feliz. É o casal homossexual que pede visibilidade e aceitação, e que, ao fim de anos, continua a não poder viver o Natal plenamente, porque há um sogro, uma tia, um irmão que entende que é legítimo não aceitar a vida que não é sua, como se lhe tivesse sido concedido esse poder. Estes são os que precisam de defesa.
Na página 50, o João explora o tema da homofobia – e, por acaso, aborda o motivo pelo qual ainda falo sobre a minha sexualidade, embora para mim, pessoalmente, seja um não-assunto já há décadas.
Foram precisos séculos para se reconhecer que a homossexualidade não é uma doença. Foram precisos anos, mesmo após a transição para a nossa democracia, para a homossexualidade não ser considerada crime… E não se julgue que o trabalho está feito. A homofobia está na rua todos os dias. A vergonha ainda existe. A perseguição, o olhar estranho, o comentário reles e ordinário. A tirania do silenciamento ainda aí estão. O trabalho não está feito, porque, sempre que se avança, há quem queira recuar. Há quem queira calar. Quando tudo era feito às escondidas, tudo era confortável para os tiranos do silenciamento.
O João também explora a sua própria visão sobre a espiritualidade e o cristianismo no contexto da identidade e da igualdade. Da página 63:
Atacar a igualdade entre homens e mulheres, o direito ao amor, a possibilidade de escolher, em nome de uma alegada fidelidade a valores espirituais, é, no meu entender, trair o cristianismo. Reduzir e simplificar, condenando e desprezando, é tornar absurdamente simples realidades complexas. Parece simples defender a vida de um bebé quando se penaliza a interrupção voluntária da gravidez. Mas recusa-se discutir a vida de tantas mulheres que morreram em abortos clandestinos feitos em condições inomináveis. Foge-se da realidade das que ficaram com o útero irremediavelmente danificado e que não puderam gerar mais vidas, porque nunca se quis discutir um problema de saúde pública. Fecha-se os olhos à hipócrita desigualdade entre as que morriam e as que faziam abortos recatados, em segurança, sem escândalo, mas com dinheiro. Oculta-se da discussão a verdade da vontade de encarcerar a jovem que abortou. São vidas em conflito. São realidades duras. Mas o discurso reducionista não quer o perdão nem quer discutir a dignidade das vidas humanas em jogo. Quer apenas moralizar, julgar, condenar e silenciar. Quer os antípodas do cristianismo.
Um pouco mais adiante, o autor foca a capacidade humana mais importante na luta contra preconceitos e no esforço para nos livrarmos de uma mentalidade tribal: a empatia. Da página 67:
A empatia remete-nos para outro patamar. Obriga a conhecer e convida-nos a tentar interpretar a realidade pelo olhar do outro. Para isso, tenho de vencer a unidirecionalidade da simpatia e meter-me lá no lugar dele. A empatia requer que a identidade se multiplique em identidades várias. A minha identidade tem de se anular, nem que seja momentaneamente, para que a identidade do outro se concretize na minha forma de ver o mundo.
Conheço vários casos de famílias que alguns apelidariam de tradicionais que, subitamente, se viram confrontadas com tudo o que sempre desprezaram e odiaram dentro da sua própria casa. Se há histórias de perpetuação do silêncio e de recusa de contacto com aquilo de que nunca gostaram, muitas são aquelas que, quando a realidade lhes bateu à porta, se transformaram e se viram obrigadas a pensar que o suposto mal, a alegada imoralidade, afinal, era bem e podia ser pureza e virtude.
Os defensores da identidade única têm medo de olhar o mundo pelos olhos dos outros. Dá tanto trabalho. Implica que se afastem da sua miopia e das suas convicções plenas.
No capítulo seguinte, o João fala da sua própria área profissional: a Educação. Aborda a ideia “fantasiosa”, segundo ele, de uma escola “neutra”. Neste contexto, apresenta a sua perspectiva sobre os ataques das forças reacionárias à educação sexual e a alguns outros temas nos currículos escolares. Da página 84:
O pânico instala-se entre os ultraconservadores quando a componente de Cidadania inscreve a educação sexual, a igualdade de género e, em muitos casos, o tema do multiculturalismo. É aqui que as portas se fecham e começam os comentários inflamados sobre o imiscuir do Estado nas funções da família. Tratar assuntos que alguns entendem ser da esfera privada da família é imediatamente considerado um ataque à liberdade e à instituição familiar. Há duas dimensões em que se demonstra facilmente a falácia deste argumentário. Por um lado, podemos voltar às obrigações do Estado constitucionalmente consagradas. O Estado, através do sistema educativo, deve promover e facultar os conhecimentos que permitem proteger os cidadãos, garantir o seu desenvolvimento e habilitá-los para as suas escolhas futuras. A educação sexual nas escolas tem sido instrumental para a prevenção da gravidez na adolescência e para o combate às doenças sexualmente transmissíveis. São muitos os jovens que não encontram, na família, a oportunidade de discutir abertamente estes temas, ainda hoje, em 2024. Talvez os opositores à educação sexual nunca tenham lido os referenciais de educação para a saúde ou talvez estejam, como sempre – e já o fizeram –, à procura das palavras certas para a descontextualização e desinformação. A escola promove a informação e o esclarecimento, indo os referenciais mais longe na medida em que sensibilizam para o respeito entre pares, para a importância da afetividade como base de qualquer relação. O que preferem? A educação sexual de antigamente que, por não existir, era feita pelos comentários sussurrados pelos pares ou nas imagens pornográficas que circulavam pelas escolas? Sabendo-se que a educação sexual é um instrumento fundamental de combate à gravidez precoce, inquieta-me que não entendam que haverá tantas menos interrupções voluntárias da gravidez quanto maior for a intensidade da educação sexual.
Neste contexto, eis uma consideração que considero importantíssima:
A educação sexual nas escolas sensibiliza as crianças para a sua própria proteção, tornando-as conscientes de que o seu corpo e a sua sexualidade não são comandados pelos outros. O abuso sexual de crianças ocorre maioritariamente em contexto familiar. Não será importante haver espaços alternativos em que o domínio do corpo e a proteção sejam abordados para que não se cresça na culpa e na normalização do abuso? Ou preferem o silêncio?
Do portentoso último capítulo, “Por uma cultura de vidas”:
Aceitar que as vidas são muitas, plurais e diversas gera reações que nos custa entender. Acusam as políticas públicas que reconhecem direitos a quem não os tinha de promover uma “cultura de morte”. A cultura de morte seria a que desiste das pessoas, em qualquer fase da sua vida. Não há forma mais dura de desistência do que a recusa da identidade. Quando falam da proteção de uma identidade única de um modelo de família único, pretendem anular as identidades, desumanizando os que não se alinham com os padrões que defendem.
Uma última consideração minha. E depois um tópico final que me pode fazer parecer tolo…
Raramente tenho lido trabalho de qualquer autor heterossexual que entenda por que os LGBT consideram os ataques contra nós tão absurdos e irracionais. Porquê denegrir alguém por ser alto? Ou baixo? Porquê recusar direitos iguais a quem tem olhos verdes? Ou a quem é canhoto? Ou a quem tem cabelos encaracolados? Sim, nós, as pessoas LGBT, achamos os preconceitos contra nós igualmente absurdos. E ainda mais prejudiciais, porque violam o nosso direito de dar e receber amor. E de sermos nós mesmos. O João entende isso claramente. Dou-lhe os meus parabéns por usar a sua empatia de forma tão plena e bem-sucedida – e não apenas em relação aos LGBT, mas também em relação às mulheres, aos negros, às pessoas com deficiência e a todas as minorias.
Um último e muito breve assunto que quero abordar convosco. É um tópico que me pode fazer parecer tolo ou ingénuo. Felizmente, tenho idade suficiente para não me importar que os outros achem que sou um pouco pateta. E descobri uma coisa muito importante: que arriscar parecer ridículo quase sempre significa que estou no caminho certo.
Sempre que entramos em contacto com uma pessoa já adulta, seja num restaurante, no lançamento de um livro ou simplesmente na rua, tendemos a esquecer que esse outro ser já sobreviveu a traumas tremendos. Mesmo que pareça contente e bem ajustado, provavelmente já passou pela morte dos seus avós, talvez até de um ou mais dos seus pais e irmãos. Talvez tenha tido uma doença grave. Ou talvez a sua esposa, o seu marido ou um dos seus filhos tenha tido problemas físicos ou perturbações psicológicas que o obrigaram a ficar semanas no hospital. Talvez não tenha conseguido entrar na universidade que pretendia frequentar, tenha perdido o seu melhor emprego ou visto serem-lhe recusadas bolsas para o trabalho a que dedicou a vida. Sem dúvida, sofreu deceções quase insuportáveis, como todos nós.
Então, o que quero dizer é que somos todos sobreviventes. Cada um de nós foi esmagado pela vida uma vez ou outra. E passou por períodos de desespero.
Esquecemos isso facilmente. Sei que eu o esqueço de vez em quando.
Consequentemente, muitas vezes somos mal-educados com pessoas que não conhecemos e tratamo-las de maneira desrespeitosa. Minimizamos as suas carências e dificuldades. Fazemos de conta que eles não tiveram nunca de viver meses ou até anos com o coração partido. Mas tiveram.
No mundo insanamente competitivo e cheio de ódio em que vivemos, penso que é essencial lembrar que somos todos sobreviventes. E que, para conseguirmos a coragem de continuar a viver a nossa vida, precisamos da gentileza, do entendimento e do encorajamento dos outros… todos os dias.
O que os autores de Identidade e Família têm feito é declarar que as pessoas tradicionalmente marginalizadas, caluniadas e perseguidas não merecem esta gentileza e encorajamento. E, afinal de contas, é essa total falta de solidariedade e respeito que acho tão triste e perturbadora. E que me dá vontade de me esconder num refúgio.
Felizmente, o livro do João é o antídoto para essa vontade de nos isolarmos do mundo e evitarmos pensar em pessoas e ideias que achamos cruéis, perturbadoras e desprezíveis. O Manifesto pelas Identidades e Famílias criou em mim – e penso que vai criar em todos os leitores – mais energia e força para lutar por um mundo mais igualitário e inclusivo. E, sim, um mundo mais gentil. Porque é isso que todos nós, sobreviventes, merecemos.