O Inimigo Interno: Ser cristão-novo em Portugal (1492-1536)
Publico em “Factos Desconhecidos da História de Portugal” (Selecções do Reader’s Digest, 2004)
O inimigo interno
Ser cristão-novo em Portugal (1492-1536)
Entre 1492 e 1536, um período de apenas 44 anos, os Judeus de Portugal sofreram quatro traumas que destruíram quaisquer hipóteses que tinham de sobreviver como comunidade.
Portugal era então um ermo no recanto mais afastado da Europa, uma terra onde os ursos percorriam as florestas de carvalhos e pinheiros, os lobos uivavam à noite e, junto com os bandidos, ainda ameaçavam os viajantes nocturnos nos caminhos rurais dificilmente transitáveis. Nessa altura, as principais urbes eram as mesmas que hoje, Lisboa e Porto, embora as cidades com feiras do árido Sul — Évora, por exemplo — tivessem uma importância relativa hoje perdida.
Lisboa em particular era uma ilha de comércio e relativo conforto neste território de fronteira da Europa. Dificilmente poderia ser qualificada como uma metrópole no sentido moderno da palavra, mas contava cerca de 65 000 habitantes, para não mencionar os milhares de marinheiros, comerciantes e viajantes que a visitavam. Era acima de tudo um porto azafamado, onde centenas de estivadores de serviço às caravelas descarregavam pimenta e canela da Índia, sedas do Oriente, ouro africano e mesmo leopardos e tucanos do Novo Mundo.
A capital portuguesa era então um conglomerado irregular de ruas densamente povoadas coroado por um castelo no alto de uma colina, com o centro a estender-se entre o Rossio e o Tejo, no Terreiro do Paço, o antigo nome da actual Praça do Comércio.
Para a maioria dos visitantes e dos residentes, deve por vezes ter parecido um local incrivelmente agitado. Sobretudo a Rua Nova dos Mercadores, que tinha cerca de 300 m de comprido e 9 m de largura. Segundo um inquérito de princípios do século XVI, ladeavam-na 405 prédios de três e quatro andares, com 30 oficinas onde se trabalhavam as sedas, 11 livreiros, 13 capelistas, 9 boticários e dezenas de outras lojas e oficinas.[1] Significativamente, a Rua Nova dos Mercadores atravessava o principal bairro judeu, e muitos dos lojistas eram judeus.
Porém, antes de nos deixarmos levar pelas maravilhas de Lisboa, lembremos também que era uma cidade onde não havia nada que se parecesse com o conceito actual de saneamento e higiene pública. Imaginem o cheiro de 43 peixeiros, 25 tripeiros, 30 carniceiros municipais e 50 negociantes de trapos metidos numa área que não ultrapassava a da Baixa actual.[2] De residentes iletrados e piolhosos que despejavam os seus penicos pelas janelas, gritando para os passantes que calcorreavam as ruas não pavimentadas: «Lá vai água!».
Acrescente-se o odor agressivo dos montes de excrementos que se acumulavam contra a face exterior das muralhas, para onde se atirava lixo, escravos mortos e Deus sabe que mais, e ficareis a saber porquê os cheiros ocupam um lugar tão importante no meu romance.[3]
Não esqueçamos também que estes eram tempos de pestes e superstições. E de escravatura e servidão. Porque calcula-se que, na altura, cerca de 10% da população de Portugal fosse constituída por escravos agrilhoados, que limpavam a porcaria omnipresente das ruas e vendiam como ambulantes água e mantimentos. Após uma visita ao Portugal desses tempos, Clenardo, o conhecido humanista belga, escreveu: «As cidades parecem tabuleiros de xadrez, com tantos pretos como brancos.»[4]
Quanto aos Judeus, constituíam provavelmente entre 5 e 10% da população de Portugal em 1492, com as maiores comunidades situadas em Lisboa, Évora e Porto, mas contando outras mais pequenas em praticamente todas as cidades.
Estes judeus sefarditas tinham coabitado com romanos, cristãos e mouros em Portugal possivelmente desde tempos bíblicos, quando os mercadores judeus acompanharam a expansão das colónias fenícias ao longo das costas do Mediterrâneo até Cadiz, um importante entreposto comercial fenício fundado em 1100 a. C.
Talvez não desde tão cedo. É difícil dizer. Alguns historiadores preferem situar as origens das colónias judias uns séculos mais tarde, com o início do domínio romano sobre a Europa e o Médio Oriente. Tenhamos em mente que quando Roma esmagou Israel, os Judeus foram forçados à chamada diáspora romana, reestabelecendo-se em muitas outras áreas do Oriente Próximo e da Europa.
Em qualquer dos casos, desde os primeiros séculos da nossa era, os Judeus viveram na Península Ibérica, primeiro sob o domínio dos Romanos, e depois dos Suevos, Visigodos e outros povos germânicos que entraram em Portugal nos séculos IV, V e VI. Quando um povo originário do Norte de África, conhecido pelo termo de Mouros, aqui chegou no século VIII, os Judeus ficaram e viveram também sob o seu domínio.
Ao longo dos séculos que se seguiram, cruzados cristãos reconquistaram aos Mouros a totalidade da Península Ibérica, gradual e sangrentamente. Lisboa caiu nas suas mãos em 1147. E em 1249 Portugal inteiro estava nas mãos da Igreja. O que nos conduz ao período dominado pelos cristãos de 1492 a 1536, um tempo único na história dos Judeus portugueses, de dramatismo e sofrimento sem precedentes.
Nada menos que quatro acontecimentos traumáticos ocorreram nesta altura com os Judeus de Portugal, deixando-os confundidos, perdidos e, num sentido muito literal, identificados como sendo o inimigo pela população cristã e particularmente pelos membros do clero. E abandonados para sempre pelo seu único e tradicional aliado: a coroa portuguesa.
Foi uma época de que os Judeus lusitanos nunca recuperariam. E o início, também, da diáspora judaica portuguesa, uma vasta rede de centros de comércio que se estendia de Goa, na Índia, até à ilha de Curação, nas Caraíbas.
O primeiro destes eventos traumáticos ocorreu a 31 de Março de 1492, quando os reis Fernando e Isabel, responsáveis pela maior «limpeza étnica» do seu tempo, lançaram da Alhambra, em Granada, um édito de expulsão que bania os Judeus espanhóis da sua pátria.
Todos ouvimos falar desta ordem de expulsão na escola, claro, mas o que nunca nos contaram foi para onde foram os Judeus.
Muitos, sobretudo os de Castela, atravessaram a meseta escaldante da Estremadura na primeira semana de Agosto de 1492 e passaram a fronteira montanhosa, entrando em Portugal.
Segundo o padre e cronista Andrés Bernáldez, 3000 judeus entraram por Bragança, 30 000 por Miranda do Douro, 35 000 em Vilar Formoso, 15 000 em Marvão e 10 000 em Elvas.[5]
Pensa-se que tenham entrado em Portugal nessa altura mais de 100 000 judeus espanhóis, uma vez e meia a população de Lisboa e provavelmente cerca de 10% a de todo o reino.
O rei D. João II permitiu que 630 famílias abastadas ficassem permanentemente em Portugal, mediante o pagamento de 100 cruzados. Autorizou que o resto dos judeus espanhóis entrasse no seu reino e permanecesse por oito meses, mediante o pagamento de oito cruzados por pessoa, excepto os ferreiros e latoeiros, necessários à produção de armamento e cujo pagamento foi reduzido para a «pechincha» de quatro cruzados.[6]
Só havia um problema: muitos dos candidatos a imigrantes não conseguiam pagar. Por isso, entraram em Portugal clandestinamente. Outros, que conseguiram arduamente reunir o montante necessário, ficavam sem dinheiro para pagar as viagens que os levassem de Portugal no final do período de oito meses que lhes fora concedido pelo rei. Aqueles que se descobriu terem entrado clandestinamente ou serem incapazes de pagar a passagem de saída ao fim dos oito meses de refúgio foram vendidos sumariamente como escravos.
Tenhamos em conta que muitos destes judeus tinham sido reduzidos a uma extrema pobreza. Pela simples razão de que com tantos arrancados às suas casas ao mesmo tempo, a Espanha tinha-se tornado, da noite para o dia, num mercado de compradores. Novamente segundo Bernáldez, «uma vinha vendia-se pelo preço de um lenço de assoar, uma casa por um burro, uma oficina por um pano de linho ou um pão».[7]
Assim, nem mesmo uma casa ou uma vinha teriam dado a estes imigrantes aterrorizados dinheiro suficiente para comprarem a sua liberdade. Acrescente-se que todas as propriedades comunais judaicas, por exemplo sinagogas e escolas, não podiam ser vendidas e foram confiscadas pela coroa espanhola; muitas delas foram subsequentemente convertidas em igrejas.
Em menor grau, esta imigração sem precedentes deverá ter representado um desastre também para os Judeus portugueses, porque sobre eles recaiu a responsabilidade de tentar absorver e acomodar as dezenas de milhares de novos residentes vindos de Espanha durante pelo menos oito meses. Nestes tempos, os Judeus eram obrigados a viver no interior das suas judiarias e cuidar dos seus.
Podemos tão só imaginar as recriminações acumuladas contra os Judeus espanhóis não apenas pelos cristãos, mas também pelos menos generosos dos seus irmãos judeus portugueses.
Deste modo, em Agosto de 1492, formaram-se em Portugal duas categorias de sefarditas, portugueses e espanhóis, ambas indubitavelmente aterrorizadas e empobrecidas.
Então, oito meses mais tarde, D. João II cumpriu a ameaça de escravizar os judeus espanhóis que não tivessem conseguido dinheiro suficiente para zarpar do seu reino. Na verdade, deu rédea solta aos seus instintos mais cruéis, e 2000 crianças judias espanholas com menos de oito anos foram arrancadas aos seus pais, baptizadas à força e enviadas para a ilha desabitada de São Tomé, ao largo da costa ocidental africana. Aí, a maioria delas rapidamente morreu de malária, fome, sede e perseguições. Valentim Fernandes, o conhecido impressor quinhentista lisboeta, diz-nos que em 1506 já tinham morrido 1400 destas crianças.[8]
Prova do efeito psicológico devastador que isto teve nos Judeus é o facto de praticamente todos os cronistas sefarditas no século seguinte o terem destacado, incluindo aquele que foi talvez o mais importante, Samuel Usque. Vários deles exprimem os seus lamentos pelas crianças em termos bíblicos, o que sublinha o dramatismo que atribuem ao acontecimento. Por exemplo, o rabi Shelemóh Alkabetsz, poeta e cabalista do século XVI, escreve na sua elegia: «Os preciosos filhos de Sião (Lamentações 4:2) foram novamente atirados aos covis dos leões e aos montes onde caçam os leopardos (Cântico dos Cânticos 4:8), numa terra de desertos e areias movediças, uma terra erma e amaldiçoada, onde não há vivalma, onde ninguém mora (Jeremias 2:6), mas onde vivem a coruja e a abetarda, e o bufo e o corvo (Isaías 34:11), os chacais e as avestruzes, onde as feras acasalam com as hienas e os sátiros clamam uns pelos outros (Isaías 34:13-14).»[9]
Penso também que os Judeus, ao longo do século seguinte, viveram este acontecimento como uma espécie de presságio. Habituados a raciocinar em termos simbólicos pelo estudo cuidadoso da Torá, muito provavelmente viram a perda dos seus filhos como um símbolo de que para eles já não havia futuro na Península Ibérica. Nem em Espanha nem em Portugal havia lugar para as suas sementes crescerem.
Infelizmente, sabemos muito pouco sobre as relações entre os judeus espanhóis que ficaram em Portugal e os seus irmãos portugueses. Não temos, por exemplo, registos da sobrepopulação que terá ocorrido nas judiarias, ou sobre como as escolas e hospitais judeus puderam acolher tantos novos residentes. Em parte, a informação é tão escassa porque, menos de cinco anos mais tarde, outro acontecimento traumático amputou os Judeus da sua própria identidade.
Este segundo acontecimento ocorreu em Dezembro de 1496. Nessa altura, já D. Manuel I acedera à coroa portuguesa. E, generosamente, garantira a liberdade aos judeus escravizados. Depois, porém, tornou-se ganancioso. Decidiu fazer um acordo com Fernando e Isabel. Expulsaria os Judeus — e os Mouros — do seu reino em troca de que estes lhe concedessem a mão de sua filha em casamento.
Porém, imediatamente antes de a ordem de expulsão ser efectivada, D. Manuel I decidiu converter os Judeus em vez de perder súbditos tão valiosos. Em Março de 1497 fechou todos os portos de embarque e ordenou que os Judeus fossem reunidos e arrastados até às pias baptismais.
Conta-se que uns 20 000 destes convertidos à força foram encurralados no Palácio dos Estaus, em Lisboa, uma residência real junto do Rossio que mais tarde seria usada como sede da Inquisição.[10]
Embora nos tenham chegado relatos de alguns judeus que preferiram matar os filhos e cometer suicídio a permitir que se tornassem cristãos, a maioria, sob ameaça de morte ou perda dos filhos, decidiu aceitar Jesus como o Messias.
O que poderá ter acontecido àqueles que recusaram o baptismo é bem explicitamente ilustrado pelo sofrimento do primeiro-rabino de Portugal, o rabino Simon Maimi, que, junto com outros seis, foi emparedado até ao pescoço numa masmorra durante sete dias e sete noites. Três destes líderes judeus morreram, entre eles Maimi, e os outros quatro, segundo um cronista, foram levados para o mar e atirados borda fora.[11]
Chamados Anusim entre eles, o que significa «Forçados», os judeus conversos foram designados pela coroa como cristãos-novos, para distingui-los dos chamados cristãos velhos.
A estes cristãos-novos portugueses foram dados vinte anos para abdicarem dos seus costumes tradicionais judeus, uma promessa que se revelou vã nas duas décadas de preconceito e cativeiro que se seguiram. Ainda assim, muitos deles conservaram as suas crenças. Em segredo e correndo grandes riscos, diziam as suas orações hebraicas e praticavam os seus rituais, em particular os relacionados com a observância do sábado (sabbath) que, desde a destruição do templo de Salomão, se tornara o centro da vida dos Judeus, assumindo o lugar de qualquer centro geográfico.
Para compreendermos porquê esta conversão terá sido tão traumática para os Judeus, penso que temos que fazer um salto de consciência — para imaginarmos que somos definidos, muito mais do que é possível para a nossa mente ocidental contemporânea, pela nossa fé. A este respeito, teremos que lembrar que os três primeiros mitzvahs do judaísmo, três dos actos mais importantes na vida de qualquer judeu, requerem, mais do que acreditar no Deus de Israel, o amor por um só e único Deus. Ao aceitar Jesus como o Messias e a Trindade como a estrutura fundamental da divindade, cada judeu estava literalmente a romper o seu compromisso com o Deus de Israel e a sua própria identidade, quebrando o seu elo numa cadeia que recuava até Abraão.
Tenhamos em mente, também, que isto acontecia antes da grande idade da secularização, em que um judeu passou a poder definir-se como tal sem acreditar em Deus, sem frequentar a sinagoga e sem conhecer uma única oração hebraica. Naquela altura isso era impensável. Não havia judeus seculares. Ou se houvesse, guardavam esse segredo muito bem guardado, para não serem julgados como hereges e até excomungados pelas suas comunidades, como aconteceu décadas mais tarde a um judeu de ascendência portuguesa, Baruch Espinosa.
Curiosamente, alguns historiadores e filósofos, como o especialista israelita em Espinosa Yirmiyahu Yovel, defendem que a secularização na Europa começou aqui mesmo, quando os cristãos-novos se viram numa terra de ninguém entre o cristianismo e o judaísmo, alienados, se quisermos, de ambas as religiões e procurando um novo caminho para a sua auto-definição.[12]
Em todo o caso, se restam dúvidas sobre com que desespero os Judeus portugueses do século XV combateram a conversão forçada, sobre a importância do significado deste acontecimento para eles, os comentários de Samuel Usque que se seguem são elucidativos. Usque foi um judeu português exilado que publicou uma das obras primas da literatura lusa em Ferrara, em 1533, um poema histórico intitulado Consolação às Tribulações de Israel. Discutindo a tentativa da coroa de baptizar crianças judias, escreve Samuel Usque:
«Muitas belas promessas foram feitas para induzi-los a tornarem-se voluntariamente cristãos, mas foram firmes e recusaram; sobre o qual foram arrastados pelas pernas e pelos braços até às igrejas, onde lhes deitaram água por cima. Depois disto, foram devolvidos aos pais aflitos, que viviam miseravelmente, e a quem foi dito que os seus filhos eram agora cristãos e os odiariam se não fizessem o mesmo. Mas eles não se submeteram. O rei ordenou então que fossem privados de comida e de bebida. Ao fim de três dias, achando que eles prefeririam morrer a renegar a sua fé, foram arrastados pelos cabelos e pela barba, batendo-lhes e ferindo-os, até às igrejas, onde foram aspergidos com água. Aos que assim foram baptizados foram dados nomes cristãos, e foram postos à guarda de cristãos velhos, para verificarem que observavam o catolicismo e se mantinham na fé. Um pai que assim fora levado com os seus seis filhos por saber de experiência feito lhes recomendou que antes morressem que renegassem a sua religião. Foram todos assassinados. Alguns, antes que abandonar a religião de seus pais, atiravam-se pelas janelas ou para dentro de poços. Os seus cadáveres eram recolhidos e queimados, para inspirar nos amigos e familiares sobreviventes o medo e o temor.»[13]
Além da profunda ruptura e da crise de identidade provocadas claramente por esta conversão, houve uma segunda razão, política, para o trauma.
Deveria aqui mencionar que os Judeus portugueses sempre haviam mantido comunidades autónomas sob o domínio e a protecção directa dos reis cristãos.
Por autónomas quero dizer que a coroa portuguesa dava aos Judeus o direito de controlarem as suas próprias escolas, tribunais, bibliotecas, balneários e sinagogas. Viviam literalmente em ilhas dentro do reino de Portugal. Ilhas autónomas judaicas.
Em troca desta autonomia, que era muito apreciada, aos judeus eram cobrados impostos mais elevados que aos cristãos, pagavam o direito à cidadania plena e estavam perigosamente sujeitos aos caprichos da coroa. Por isso, tornaram-se fortemente dependentes da mercê dos reis e da relação existente entre os chamados judeus da corte e o monarca reinante.
Também se esperava que vivessem dentro dos seus bairros, as judiarias, que, durante alguns períodos da sua história, eram fechadas ao pôr-do-Sol. Em muitos casos para sua própria protecção.
Assim, no momento em que a água do baptismo escorreu sobre as suas frontes, essa autonomia, esse poder, essas ilhas autónomas deixaram de existir. Acabaram-se as escolas, os hospitais, os tribunais, os rabinos, os chantres judaicos. E os carniceiros judeus, o vinho e a comida kosher. Nada os protegia dos olhares e do ódio dos cristãos. Nada os protegia da Igreja, que antes da conversão pouco poder tinha sobre os Judeus.
E acabaram-se os livros, uma vez que D. Manuel I baniu todos os livros hebraicos, excepto os textos de medicina. Isto tinha mais significado do que possa parecer à primeira vista, uma vez que quando o rei lhes retirou os livros, quando confiscou a Torá e o Talmude e os escritos místicos de gerações de filósofos judeus, os cristãos-novos perderam todas as possibilidades de manter os seus rituais e a sua relação com Deus.
Note-se que, segundo a tradição judaica, a Torá é o corpo de Deus. Ou, se preferirmos uma linguagem menos poética, existe a crença de que se Deus tivesse corpo, esse corpo seria a Torá. E existe também a forte crença de que o hebraico é uma língua sagrada. Sem hebraico, devido às particularidades da língua, em que as letras são também números, tornava-se literalmente impossível praticar muitos dos rituais do misticismo judaico, a cabala, que tira engenhoso partido das possibilidades numéricas do hebraico.
E assim, para resumir o significado da Grande Conversão, os Judeus, de uma penada, perderam a sua identidade tradicional, o seu poder político, o corpo metafórico de Deus, a sua língua sagrada e a sua filosofia mística da cabala.
O que nos conduz ao terceiro trauma.
Como já foi dito, na altura da grande conversão de 1497, D. Manuel I deu aos cristãos-novos vinte anos para perderem os seus costumes judaicos antes de começar a persegui-los. Uma atitude bem tolerante para um governante ganancioso e fanático, poderíamos dizer. O tempo suficiente para estas almas traumatizadas poderem respirar, pelo menos.
Só que não aconteceu assim.
Nove anos após a conversão, na tarde de 19 de Abril, na semana das celebrações secretas da Páscoa, iniciou-se uma revolta. É difícil determinar as causas exactas. Dizem-nos os historiadores que o povo de Lisboa estava desesperado, enlouquecido até devido à peste e à seca que afligiam a cidade. O que sabemos de certeza é que uma turba cristã, incitada por frades dominicanos aos gritos de «Morte aos hereges! Morte aos Judeus!», varreu os bairros tradicionais dos judeus de Lisboa, matando quem conseguiram apanhar pela frente. Calcula-se que 2000 cristãos-novos foram queimados em duas grandes piras no Rossio. A madeira para as fogueiras foi paga de bom grado por marinheiros nórdicos em busca de um ponto alto para a sua escala em Lisboa.[14]
Uma vez que a população de cristãos-novos de Lisboa não deveria ultrapassar as 10 000 a 12 000 pessoas, todas as famílias deverão ter tido pelo menos alguém que pereceu nesse dia.
Além disso, numa cidade de 65 000 habitantes, todos deveriam saber quem eram os cristãos-novos e quem tinha perdido entes queridos. Imaginem, nos meses seguintes, os olhares carregados suportados pelos cristãos-novos que tinham que enterrar e observar o luto pelos seus mortos, e procurar refazer as suas vidas estilhaçadas. Imaginem a desconfiança e o medo.
Em parte, penso que este medo terá sido mais difícil de suportar pelos Judeus portugueses que pelos seus irmãos da Alemanha, do Leste da Europa, de Espanha e outras partes. Porque Portugal, surpreendentemente, depois de tudo o que ficou dito, fora tradicionalmente um local tolerante para com os Judeus.
Com isto quero dizer que em Portugal os Judeus tinham tido direito aos seus locais sagrados e a praticar largamente o seu culto — o que nem sempre foi o caso na Alemanha, em França e Inglaterra, por exemplo. Em Portugal sempre tinha havido médicos e cirurgiões judeus conceituados, é claro, e alfaiates, sapateiros, ourives e prateiros, mas também agricultores, negociantes de vinhos e ferreiros judeus. E vendedores de fruta e iluministas de manuscritos, como a família Zarco do meu romance. Na verdade, não havia nenhuma profissão que estivesse interdita aos Judeus.
Além disso, em Portugal os Judeus não tinham estado expostos a pogroms periódicos, como era o caso na maior parte da Europa de Leste e mesmo na Espanha. Desde o início do domínio cristão no século XII até ao final do século XV, as relações entre judeus e cristãos em Portugal são, na verdade, caracterizadas por uma notável tranquilidade.
E assim, para resumir os primeiros três traumas, começamos por ver uma população judaica engrossada até ao ponto de ruptura com os seus irmãos empobrecidos e emocionalmente desfeitos vindos de Espanha, os seus filhos serem-lhe tirados e enviados para morrer em África. Depois, vemo-los convertidos em massa sob a ameaça de morte, os seus elos com o judaísmo e, em particular, com as suas potencialidades místicas cortados, as suas antigas identidades e poder político perdidos. E finalmente, no coração da capital portuguesa, vemos dois mil cristãos-novos assassinados e queimados em piras diante da igreja dos dominicanos.
Depois disto, trinta anos mais tarde, chegou o golpe definitivo.
Em 23 de Maio de 1536 a Inquisição estava definitivamente estabelecida em Portugal, tornando virtualmente impossível aos cristãos-novos praticar a sua religião tradicional, mesmo em segredo, como o haviam feito antes. Tornou-se punível criminalmente até lavar os lençóis a uma sexta-feira, antes da tarde do sábado judaico. Ou acender velas na altura errada. E para estas infracções havia uma possibilidade bem real de se acabar os dias numa masmorra ou com os pés assados na fogueira.
Nesta atmosfera de medo, todos os cristãos velhos seriam vistos como informadores ou chantagistas potenciais. Todos os cristãos-novos se considerariam alvo de murmúrios, olhares, maledicência, discriminação e ódio fanático.
Por altura do primeiro Auto de Fé em Lisboa, a 20 de Setembro de 1540,[15] quando o primeiro grupo de cristãos-novos agrilhoados e famintos foi levado até à Praça do Comércio sob os apupos de uma jubilosa multidão de cristãos velhos que mastigavam ruidosamente as suas ameixas de compota, quando as chamas foram ateadas nas piras, os gritos destes homens, mulheres e crianças portugueses marcaram o fim do judaísmo em Portugal.
A partir desse momento, cada cristão-novo sabia que ele ou ela tinha sido identificado definitivamente como o inimigo — o inimigo interno, se quisermos —, uma ameaça potencial à ordem moral e social da época.
Dizimados e aterrorizados, vivendo literalmente sob estado de sítio, estes cristãos-novos fizeram, nos três séculos seguintes, tudo o que puderam para sair dali e nunca mais voltar.
E escaparam-se, fazendo de Constantinopla e Salónica prósperas cidades judias — junto com Ferrara, Rodes, Livorno, Dubrovnik e muitas outras.
Como nota de rodapé, vale a pena assinalar que os descendentes destes judeus corajosos que conseguiram escapar, que construíram com êxito comunidades em terras longínquas, foram mortos no Holocausto. Quarenta e cinco mil dos que pereceram eram de Salónica, judeus que ainda falavam e cantavam em português ou em espanhol, alguns deles tendo conservado as chaves das suas casas dos séculos XVI e XVII em Lisboa ou Beja, no Porto ou em Évora.
Para finalizar, eis um breve parágrafo de queixume da Consolação às Tribulações de Israel, de Samuel Usque, um parágrafo de que o próprio Mercador de Veneza de Shakespeare poderia ser tributário:
«Em que é que o pó de que eu fui amassado foi diferente do dos outros corpos terrenos para que tu, ò terra, não me queiras ter sobre ti? Que deformidade há na minha cara, que desproporção nos meus membros se comparados com os outros seres racionais, para que vós, ò nações, me rejeiteis e repudieis?»[16]
(Nascido em Lisboa em 1507, Samuel Usque fugiu às perseguições contra os cristãos-novos para Itália, onde viveu em Veneza e Ancona. Publicou o seu poema épico, Consolação às Tribulações de Israel, em Ferrara, em 1553, numa tipografia criada pelo filho Abraão. A Consolação é composta por três diálogos: no primeiro, aborda o sofrimento dos Judeus até à altura da destruição do Primeiro Templo pelos Persas; no segundo, até à altura da destruição do Segundo Templo pelos Romanos; e no terceiro, até à época do próprio Usque. Dedicou a obra a D. Gracia Mendes Nasy, a famosa financeira judia. O livro foi banido pelas Inquisições de Espanha e de Portugal e é considerado um clássico da literatura portuguesa.)
Para saber mais:
Cecil Roth, A History of the Marranos, Nova Iorque, Sepher-Hermon Press, 1992
E. H. Lindo, History of the Jews of Spain and Portugal, Nova Iorque, 1970.
David Nirenberg, Communities of Violence, Princeton University Press, 1998
Elias Lipiner, Os Baptizados em Pé, Lisboa, Vega, 1998.
Esther Benbassa e Aron Rodrigue, História dos Sefarditas: de Toledo a Salónica, Lisboa, Instituto Piaget, 2001.
Pinharanda Gomes, A Filosofia Hebraico-Portuguesa, Porto, Ed. Lello & Irmão, 1981.
Maria José Ferro Tavares, Os Judeus em Portugal no Século XV, Lisboa, Univ. Nova/INIC, 1982/1985
[1] João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552 (Lisboa, 1990), capítulo 4.
[2] Ibid., capítulo 4.
[3] O Último Cabalista de Lisboa, Lisboa, Quetzal, 1996.
[4] Citado por A. H. de Oliveira Marques, «A View of Portugal in the Time of Camões», in Empire in Transition, ed. Alfred Hower and Richard A. Preto-Rodas (Gainesville, Florida, 1985), p. 10.
[5] E. H. Lindo, The Jews of Spain and Portugal (Nova Iorque, 1970), p. 287.
[6] Elias Lipiner, Os Baptizados em Pé, Lisboa, Vega, 1998, p. 13.
[7] E. H. Lindo, op. cit,, p. 285.
[8] Elias Lipiner, op. cit., p. 20.
[9] Ibid., p. 29.
[10] Ibid., p. 106.
[11] Ibid., p. 108.
[12] Yirmiyahu Yovel, Spinoza and Other Heretics (Princeton, 1989).
[13] Citado por E. H. Lindo, op. cit., p. 330.
[14] Yosef Hayim Yerushalmi, The Lisbon Massacre of 1506 and the Royal Image in the Shebet Yehudah (Cincinnati, 1976).
[15] Cecil Roth, A History of the Marranos (Filadélfia, 1959), p. 73.
[16] Citado por Yosef Hayim Yerushalmi in Consolação às Tribulações de Israel, p. 61.