A Nova Era das Descobertas


26-Feb-2013

republica.jpg

"Um Diário da República", é um livro com 365 imagens tiradas em Portugal em 2010, ano em que Portugal comemorou o centenário da implementação da sua República.  Escrevi o prefácio do livro. 

A Nova Era das Descobertas

Tradução de José Lima


No dia 10 de Janeiro de 1538, o escrivão Balthasar Pires denunciou à Inquisição de Lisboa a sua vizinha Catarina Gomes por a ter visto trabalhar no dia de Natal. Quatro dias depois, outra vizinha, Guiomar Luz, confirmou a acusação, alegando ter espreitado por uma frincha na parede da casa de Catarina Gomes e tê-la visto a costurar juntamente com as netas.
Estas acusações foram feitas dois anos depois de ter sido estabelecida em Portugal a Inquisição, uma instituição religiosa encarregada pela Igreja e pelo Rei de extirpar quaisquer práticas que ainda se mantivessem entre as dezenas de milhar de judeus que tinham sido forçados a converter-se ao catolicismo em 1497.
O uso aparentemente inofensivo da agulha e linha foi quanto bastou para abrir um processo contra Catarina Gomes, acusada de praticar o judaísmo às escondidas. Ao longo dos duzentos e quarenta anos que se seguiram, a Inquisição viria a prender dezenas de milhar de pessoas como ela, na maior parte dos casos por praticarem actos do quotidiano rotineiro a que se atribuía um significado de crenças heréticas, como acender velas ao jantar numa noite de sexta-feira ou deixar por polir um crucifixo de prata no quarto de dormir. As pessoas acusadas acabavam encerradas em celas numa sombria prisão da Inquisição, sem direito a aconselhamento ou sequer conhecer a natureza exacta das acusações que lhe eram feitas.
Durante a reclusão na cadeia, as vítimas eram submetidas a torturas destinadas a arrancar-lhes a confissão de prática secreta do judaísmo. No final, se viessem a confessar os seus “crimes”, se aceitassem denunciar outros como judeus disfarçados e reconhecessem Cristo como seu salvador, acabavam sujeitos à humilhação pública de um auto de fé sob os insultos da multidão que se reunia para assistir, sendo seguidamente sentenciados a novo período de enclausuramento numa cadeia civil ou então libertados.
Os presos que se recusassem a confessar quaisquer crenças consideradas heréticas ou que não denunciassem ninguém eram mortos garrotados ou queimados vivos, também em espectáculos públicos.
Quem quer que fosse denunciado era também preso, claro. Famílias inteiras foram assim perseguidas, muitas vezes ao longo de décadas. Ficavam também reduzidas à miséria, pois a Inquisição confiscava os bens das vítimas. Durante cerca de dois séculos e meio, tais processos mantiveram-se como uma operação altamente lucrativa para a Igreja.
“Mas tudo isso se passou há muito tempo”, ouço já os protestos do leitor. “Que tem isso a ver com este projecto fotográfico?”
Apenas isto:
Se pensarmos na crueldade da Inquisição e na sua longa permanência por vinte gerações – e sobretudo no medo que inspirava tanto a cristãos piedosos como aos judeus disfarçados – será de admirar que os portugueses se tenham habituado a rodear as suas casas de muros elevados, de modo a impedirem aos vizinhos o mínimo relance do que se passava no seu interior? Ainda hoje, como depressa se aperceberá qualquer fotógrafo que viaje pelo país no actualíssimo ano de 2010, tal prova material da necessidade de absoluta privacidade continua a ser uma característica da paisagem portuguesa.
Quando pela primeira vez visitei o Porto em 1980, por exemplo, cheguei à conclusão de que a cidade não tinha nenhuns jardins, para além de uns quantos parques públicos poeirentos e mal cuidados; nos meus passeios pela cidade não via mais do que fachadas de granito enegrecido de edifícios rodeados por muros impenetráveis.
Anos mais tarde, uma amiga convidou-me para casa dela. E não foi pequena a minha surpresa ao descobrir nas traseiras da casa um jardim com laranjeiras e limoeiros e até a plumagem exuberante de um jacarandá. As azáleas desabrochavam em florações cor de rosa e brancas. Compreendi então que nas cidades portuguesas em muitas casas e apartamentos do rés do chão existem jardins maravilhosos, mas quase sempre escondidos aos olhares do exterior.
Mesmo cidades extraordinariamente bonitas como Monsaraz e Serpa retiram o seu encanto não de quaisquer manchas de verdura, mas das paredes caiadas das casas e das calçadas de pedra das ruas – da combinação de sol e de sombra incidindo sobre tais simples superfícies nuas.
Ainda nos nossos dias, as casas novas são geralmente construídas com muros altos de modo a não permitir olhares indiscretos. E quem lá mora mantém as cortinas fechadas mesmo no mais aprazível dia de Primavera ou de Verão.
Os velhos hábitos custam a passar, como se costuma dizer.
Ou nem tão velhos assim. Ao fim e ao cabo, Portugal sofreu uma ditadura de direita desde fins da década de 1920 até à Revolução de 1974, um período em que quem tivesse opiniões progressistas ou humanistas tinha de as esconder ou de emigrar.
Em resumo, Portugal é um lugar onde exterior e interior têm sido realidades tradicionalmente mantidas muito separadas.
E não só em termos de espaço físico…
Quando eu e o meu parceiro nos mudamos para o Porto em 1990, apercebemo-nos que havia por parte dos nossos amigos uma grande relutância em falar de qualquer modo que fosse sobre as suas vidas; nada que tocasse nos seus problemas com os filhos, com os pais ou com outros familiares e amigos próximos.
Compreendemos que os portugueses de bom grado falavam de arte, política, desporto, viagens e de uma série de assuntos impessoais, mas nunca falavam na sua vida privada – pelo menos não com pessoas como nós, que não faziam parte da família. Reparei também que manifestavam óbvios sinais de embaraço quando eu falava nas minhas dificuldades em me adaptar ao país (depois de ter passado na América os primeiros trinta e quatro anos da minha vida) ou nos problemas de saúde da minha idosa mãe em Nova Iorque.
Tentar – e não conseguir – fazer bons amigos com quem pudesse falar dos meus sentimentos mais íntimos tornou-se a parte mais difícil da minha nova vida em Portugal.
Havia no entanto um lado positivo em toda esta reserva, como vim a perceber um pouco mais tarde; os políticos e outras figuras públicas nunca eram assediados pela imprensa para revelarem pormenores das suas vidas privadas. Ao contrário dos americanos, os portugueses não estabelecem nenhuma relação entre a vida privada e a competência profissional. Uma coisa muito saudável, na minha opinião.
Ao mesmo tempo, o gosto dos portugueses pela discrição dá às suas cidades e vilas um ar de intriga e de mistério. O que estarão afinal a fazer as pessoas que se escondem por trás daquelas cortinas corridas?
Claro que a discrição dos portugueses faz todo o sentido se nos lembrarmos que a Inquisição e as subsequentes ditaduras lhes ensinaram que podiam correr risco de vida se deixassem que outros tivessem acesso ao que pensavam sobre si próprios e às opiniões sobre o mundo que os rodeava.
Hoje, porém, Portugal vive um período de transição, em que esta cerrada barreira entre exterior e interior começa a ceder: tanto em termos de espaços públicos como no comportamento das pessoas. Reparei, por exemplo, que nos últimos dois ou três anos alguns dos nossos vizinhos começaram a deixar as cortinas abertas o dia inteiro. Quem passa pode ver as estantes e os móveis ou até ver quem lá mora durante a refeição familiar. Talvez que para alguém que venha de uma sociedade mais aberta isto possa parecer coisa de pouca monta, mas para mim – contando agora vinte anos a viver em Portugal – é quase um milagre.
Ao mesmo tempo, os espaços públicos começam a ser valorizados e cuidados. Exemplo disso pode ser o Parque da Cidade do Porto, que nos fins de semana do Verão atrai milhares de pessoas que para aí vão fazer piqueniques, andar de bicicleta ou praticar outras actividades de ar livre. Ver pessoas a fazer jogging em vestuário reduzido sem se preocuparem minimamente por não estarem “decentemente” vestidas ou por se dedicarem a uma actividade que ainda há dez anos seria considerada “esquisita” é uma pequena revolução.
Acredito que a distância entre exterior e interior encolheu, em grande parte, porque o país não vive já isolada do resto da Europa e do mundo. Quem tem uma televisão ou um computador dispõe de um acesso aos acontecimentos da actualidade e às correntes na música, na literatura e na arte exactamente igual ao de quem vive em Nova Iorque ou em Londres.
Este facto torna-se óbvio quando se viaja no país. Mesmo nas terras mais pequenas de Trás-os-Montes ou do Alentejo, os jovens usam os mesmos jeans, ténis e t-shirts que os jovens em quase toda a parte do mundo desenvolvido.
Talvez que como consequência desta globalização as pessoas se mostrem também mais dispostas a discutir assuntos, como a orientação sexual, antes considerados tabu. E, em medida muito maior ainda, a dizer o que pensam em público, sem se preocuparem se haverá alguém à escuta.
Assim, para mim, um dos desafios para qualquer fotógrafo participante em Um Diário da República em 2010 será o de mostrar esta transição: ajudar-nos a ver a beleza gritante das fachadas de granito tradicionais do Porto e permitir-nos sentir a alegria dos miúdos a fazer skateboarding com um desprendido abandono nos pavimentos encurvados no exterior da Casa da Música; dar-nos um relance furtivo dos magníficos e aristocráticos jardins que no bairro da Lapa em Lisboa se escondem ao nosso olhar e a fazer-nos mergulhar profundamente nas emoções dos homens e mulheres de idade que, depois de passarem quarenta anos em empregos de que nunca gostaram, decidiram dedicar-se a andar de bicicleta ou a fazer windsurf ou caminhada.
Numa palavra, gostaria que os fotógrafos nos mostrassem o Portugal que emerge do seu isolamento – que nos levassem até à vida das pessoas que descobrem em si próprias novas capacidades e novos sonhos.

Michael Fieni