Meia-noite ou o Princípio do Mundo - uma crítica de Célia Vieira
12-07-2011
Meia-noite ou o Princípio do Mundo
Ciclo Páginas do Porto,
Biblioteca Municipal do Porto, 26 de Novembro de 2011
Célia Vieira
Integrado no ciclo sefardita, que traça as experiências de judeus perseguidos a partir da história de várias gerações de uma família, a família Zarco, Meia-noite ou o Princípio do Mundo , de Richard Zimler, publicado em 2003, tem como protagonista John Zarco Stewart, um ser híbrido, filho James Stewart e de Maria Pereira Zarco, meio escocês, meio português, meio cristão, meio judeu.
Este romance histórico encontra-se estruturado em duas partes (a primeira parte, dos capítulos 1 a 29; e, a segunda, de 30 até ao final), que correspondem às duas grandes etapas da biografia do protagonista.
Sintetizemos um pouco a primeira parte. A história inicia-se em 1800, na cidade do Porto, numa Europa onde as vitórias de Napoleão espalhavam tanto ecos de um novo regime como faziam ressurgir ódios apagados, nomeadamente, em Portugal, a perseguição aos judeus. Evoca a infância do protagonista desde os 9 anos, e descreve, num primeiro momento, entre 1800 e 1803 (dos capítulos 1 a 10), os episódios e aventuras (algumas delas extraordinárias, como o “milagre” da transfiguração dos pássaros) que determinaram a união profunda entre três crianças, John, Daniel e Violeta, e o seu trágico afastamento, ditado por circunstâncias que o carácter excecional das suas personalidades não pôde ultrapassar: a violação de Violeta e as retaliações que sofre pela sua família; o suicídio de Daniel, que não consegue ultrapassar a rejeição de Violeta nem a ameaça de ser levado pelo pai adotivo para a Terra Nova; a incapacidade de John para ajudar os dois amigos. Estes acontecimentos marcam a iniciação do protagonista e a sua passagem para a vida adulta, pelo “conhecimento de que a vida nunca seria justa” (p. 87). O final da infância, marcado pelo confronto com a morte, será ainda determinado pela descoberta da sua verdadeira identidade, a sua ascendência judia. Neste primeiro momento da primeira parte, têm um papel determinante os modelos de Daniel e de Violeta na sua aprendizagem: com eles, aprende a coragem, a capacidade de agir contra tudo e todos em nome das suas convicções; aprende também o poder da arte na criação de uma realidade outra, acima das convenções e da dor; com eles dá-se a descoberta do seu próprio corpo, a descoberta perturbadora do amor; mas também a aprendizagem do mal, do ciúme, da crueldade, da traição. O crescimento de John decorre, neste momento, numa cidade híbrida, como a própria personagem: “uma cidade que tinha a sua quota-parte de clubes de cavalheiros e jardins formais, mas que tinha, no seu coração, um labirinto de vielas escuras frequentadas por bufarinheiros, catraios e ladrões de pouca monta.” (p. 12). Essa dualidade patenteia-se na oposição entre os espaços em que se movem as personagens: oposição entre os bairros de Miragaia, onde mora Daniel e da zona oriental da cidade da cidade, onde mora Violeta, e as imediações do Olival, onde mora John. Esta oposição entre espaços sociais traduz-se também na diferença entre as normas de civilidade que regem o espaço familiar de John e miséria, violência e ignorância de outros habitantes da urbe (como é o caso do espaço familiar de Violeta).
Ainda na primeira parte do romance, a partir do capítulo 11, entra em cena a personagem que mais ascendente terá sobre a vida de John e aquela que dá título à obra: Meia-Noite, um boximane, que o pai trouxera consigo, depois de uma viagem a África. Descendente do primeiro povo que habitou a África Austral, um povo nómada e caçador, que os holandeses e os ingleses, à época, estavam a exterminar ou a escravizar, Meia-noite conseguirá curar John, que ficara física e moralmente abalado com a morte de Daniel e transmitir-lhe-á os ensinamentos de que ele era um dos últimos portadores. Meia-noite (ou Tsamma) ensina-lhe a arte da caça, no sentido literal e no sentido metafórico e ontológico, enquanto condição inerente à existência: num universo povoado por perseguidos e perseguidores (Lourenço Reis persegue John e a sua família; os bushmans são perseguidos na África do Sul, por ingleses, holandeses e zulus; os portugueses são perseguidos pelos franceses) é necessário aprender a lutar contra o mal (a “Hiena”) que move os que perseguem, mas é também necessário passar de perseguido a perseguidor, aprender o poder do “Louva-a-Deus”, para perseguir e defender as crenças em que se acredita, ou seja, nas palavras do narrador, neste universo é preciso perseguir o mal até à própria morte e perseguir o bem para unir o que está separado (p. 509). Na relação de amizade entre John e Meia-Noite, a aprendizagem constitui contudo uma interação em que ambos se enriquecem, o que, numa escala mais ampla, figura o progresso que pode resultar da interação entre culturas diferentes: Meia-noite aprende a falar português, aprende o modo de vida europeu, aprende a ler. Esta segunda metade da primeira parte será, porém, também ela determinada pelas perdas: o desaparecimento de Meia-noite, supostamente morto durante uma viagem realizada com o pai de John a Inglaterra, em busca de uma cura para a varíola; a inexplicável desagregação da família, que culminará com a morte do pai e a partida da mãe; a morte da esposa de John. Esta parte encerra também com duras revelações: a descoberta de que Meia-noite tinha sido traído pelo pai de John, como retaliação por uma infidelidade da mãe, e que, portanto, viveria na Carolina do Sul, depois de ter sido vendido como escravo; a descoberta de que Violeta estava em Nova Iorque.
Toda esta primeira parte é apresentada por um narrador autodiegético, numa narração que decorre em dois tempos: o do relato autobiográfico pelo qual recorda, no passado, os vários acontecimentos que contribuíram para atingir um conhecimento profundo sobre a vida e sobre os homens; e o da reflexão, no presente, duas décadas depois, já com trinta e três anos, sobre os ensinamentos que retirou dos factos e seres que marcaram a sua existência. Ao longo de toda esta parte, o protagonista, que assume um “papel secundário na vida” (p. 64) das outras personagens, prepara-se para a acção autónoma, incorporando todas as qualidades dos seres que amou, e, no final deste período da sua vida, está pronto para a grande demanda: hunting midnight.
A segunda parte do romance, dos capítulos 29 a 61 apresenta uma maior complexidade, do ponto de vista narratológico: fundada na alternância de pontos de vista entre dois narradores autodiegéticos, John e Morri, a filha de Meia-noite, descreve a busca de John, por Meia-Noite, em Charleston, na Carolina do Sul, e a preparação da fuga de Morri, de uma propriedade em River Bend, onde vivia como escrava, e a ação conjunta das duas personagens numa evasão com mais 16 escravos que os conduzirá a uma vida livre em Nova Iorque. Nesta alternância de pontos de vista, as analepses completivas permitem ao leitor reconstituir toda a informação narrativa elidida, como, por exemplo, a história de Violeta, a vida de Meia-noite desde que fora capurado, etc.. Esta segunda parte, em contraposição com a primeira, onde se sucederam as perdas, é pautada pela compensação: John recupera Midnight, a mãe, as filhas; toma Morri como filha; quase reencontra o amor com Violeta. Aliás, significativamente, nesta parte, as personagens principais recuperam também a sua verdadeira identidade, e não precisarão mais de se ocultar sob outros nomes. O romance termina, assim, em Nova Iorque, depois de nos apresentar a antítese cultural e social que opunha, nos Estados-Unidos, os estados onde perdurava a escravatura, a sul, e os estados livres, a norte. Nova Iorque será, pois, a terra da promissão, onde as personagens poderão começar uma nova vida e contribuir para a construção de um novo princípio do mundo.
Como conclusão, podemos afirmar que Meia-noite ou o Princípio do Mundo é, para além de todos os espaços geográficos onde as personagens se movem, para além da diversidade de culturas que evoca, um romance histórico sobre a escravidão e sobre a opressão/perseguição, e encerra uma reflexão escatológica, bem visível até na profusão de intertextos religiosos evocados explícita e implicitamente: a lição da viagem, para John, é a de que não haverá uma vida eterna quando o Messias chegar: “O Messias está aqui agora e nós estamos a viver no Monte das Oliveiras” (p. 509), ou, por outras palavras, a “vida é escrita no tempo presente” e “enquanto houver um homem ou uma mulher que continue escravo, o Messias não virá. Pois nós faremos o nosso próprio paraíso ou nunca o teremos” (p. 287).
A obra persegue, pois, um ethos, e a escrita assume-se para Richard Zimler como uma denúncia: “É por isso que tenho de escrever estas coisas. Caso contrário, ninguém saberia nada de nós e isso seria a mesma coisa que sermos engolidos pela terra. Como se nunca cá tivéssemos estado.” (p. 294).