A Perda do Paraíso em O Aniversário da Infanta (de Oscar Wilde)
6 April 2017
A Perda do Paraíso em O Aniversário da Infanta
Richard Zimler
(tradução de José Lima)
O conto de fadas de Oscar Wilde, O Aniversário da Infanta combina dois mitos antigos cujas variantes se podem encontrar em muitas culturas diferentes. O primeiro – a Perda do Paraíso – é indubitavelmente mais conhecido por nós na Europa através do episódio de Adão e Eva no Antigo Testamento, embora surja também num grande número de obras de ficção modernas. O segundo mito fala da destruição de alguém, de uma pessoa de bom coração ou de um par enamorado, por um mundo cruel e impiedoso. A mais famosa versão moderna deste género de conto seria Romeu e Julieta, de Shakespeare.
A intriga da história de Wilde é bastante simples…
Em Espanha, na época da Armada Invencível, uma Princesa festeja os seus doze anos com uma festa faustosa. Entre os animadores da festa conta-se um Anão corcunda que foi raptado da sua casinha na floresta por dois fidalgos que o viram quando andavam a caçar. A dança exuberante do Anão provoca troças e zombarias tanto das crianças como dos adultos presentes, mas na sua inocência aquela criaturinha acredita que a assistência está a rir-se com ele e não dele. Wilde escreve: “Talvez que o mais engraçado nele fosse a completa inconsciência do seu aspecto grotesco… Dir-se-ia até que se considerava feliz, tão grande era a sua boa disposição. E quando as crianças se riam, ele ria também com a mesma sincera alegria.”
O exuberante Anão não tarda a sentir-se fascinado pela jovem Princesa. “Não podia despegar dela os olhos, e só para ela parecia dançar”, diz Wilde aos leitores. E então, quando a Infanta atira ao homenzinho minúsculo a rosa branca que trazia no cabelo, ele fica apaixonado. Na esperança de poder encontrar-se com ela e manifestar-lhe os seus ternos sentimentos – e também ansioso por a levar consigo para a sua idílica floresta – penetra às escondidas no palácio. Depois de atravessar várias salas (outras tantas barreiras espirituais!), o Anão depara com um pequeno monstro medonho que imita todos os seus gestos e expressões. Quem poderia ser aquele homenzinho repulsivo? Como o leitor depressa compreende, não é outro senão o próprio Anão, pois que o que tinha diante de si era um enorme espelho! Em consequência disso, o inocente jovem toma consciência pela primeira vez do seu corpo disforme e da sua feia aparência. Esta súbita revelação deixa-o esmagado, como uma Perda do Paraíso.
Ao ver-se pela primeira vez, diz-nos Wilde, o Anão “solta um grito enlouquecido de desespero e cai por terra a soluçar.” A sua mágoa torna-se desmedida e impossível de suportar quando finalmente se apercebe que a Princesa, que ele imaginava apaixonada por si, “apenas tinha estado a escarnecer da sua fealdade e a rir-se dos seus membros disformes.”
Onde se encontra exatamente o Anão, agora que foi expulso do Paraíso?
O mundo da Espanha do século XVI que Wilde descreve é o da grande pompa e prosperidade da aristocracia. No entanto, ele deixa claro que sob o este aparato sumptuoso se escondia uma sociedade cruel, horrorosa, e espiritualmente disforme – tal como o Anão é fisicamente disforme. Na verdade, a corte espanhola é retratada como sendo impiedosa e perversa, especialmente porque “cultivava a paixão pelo horrível.”
Wilde explica claramente, em vários momentos desta história, que grande parte da crueldade corrente na Espanha da época fora gerada pela existência da Inquisição, que em 1478 começou a perseguir, torturar e condenar à fogueira os judeus e mouros convertidos – assim como estrangeiros de diferentes nacionalidades. Na narrativa de Wilde, o Santo Ofício reina nos bastidores graças ao terror, como por exemplo nas referências que faz a ciganos recentemente enforcados sob a acusação de feitiçaria e a um auto-de-fé em que cerca de trezentos heréticos, entre os quais muitos ingleses, tinham sido queimados.” Ao contar a Queda do Anão, Wilde menciona também que a Inquisição fora recentemente instituída no México. Parece tratar-se de uma maneira subtil de mostrar ao leitor de que não haverá piedade para inadaptados como o Anão enamorado – ou como os ingleses, os judeus e mouros convertidos – em sítio nenhum do império espanhol.
No seu mundo perverso, o próprio Rei viu-se atolado numa grotesca forma de luto a seguir à morte da sua Rainha, que ele suspeita ter sido envenenada pelo irmão dele. Manda exumar e embalsamar o corpo da esposa, e cobre-lhe o rosto de beijos na esperança de a fazer reviver. Este elemento do conto traz-nos naturalmente à memória a história de Inês de Castro.
A Espanha da ficção de Wilde é também dominada por uma rígida estrutura de classes. A própria Infanta “apenas está autorizada a brincar com crianças da sua condição.” A função das pessoas das classes mais baixas parece consistir sobretudo em manter entretidos a infanta e o resto da nobreza.
Mesmo as flores são más neste conto de fadas, e o que uma das tulipas diz acerca do Anão é uma boa ilustração da sua maldosa maneira de pensar: “É realmente feio de mais para lhe ser permitido brincar no mesmo sítio onde nós estamos.”
E por isso, depois de perder o Paraíso, o Anão não pode contar com qualquer compreensão e apoio daqueles que acorrem junto do seu corpo prostrado. Antes o tratam com escárnio e violência física.
“O meu engraçado anãozinho está amuado”, grita a Infanta. E diz para o Camareiro-Mor: “Fazei com que acorde e mandai-o dançar para mim.”
O tio da Infanta – Don Pedro de Aragón – entrou na sala e esbofeteou o Anão com a sua luva bordada. “Petit monstre”, diz ele. “Tens de dançar. A Infanta de Espanha quer que a divirtam.”
Nem insultos nem ordens conseguem fazer com que o Anão se levante, pelo que Don Pedro pensou em mandá-lo chicotear. Mas é nesse momento que o Camareiro-Mor descobre que o Anão morreu, por ter ficado de coração partido.
Mas é à Infante que cabe a última palavra nesta história: “Doravante quero que quem vier brincar comigo não tenha coração”, gritou ela enquanto corria para o jardim.
E assim, dali em diante, só quem fosse vazio de sentimentos – de amor, exuberância, bondade – estaria habilitado a viver em Espanha e a divertir os seus fidalgos.
Será que Wilde, ao escrever esta história, estaria a prever que também ele perderia as boas graças de que gozava? Passados apenas quatro anos depois da publicação de O Aniversário da Infanta, moveu um processo criminal contra o aristocrata pai do seu amante, que o tinha acusado de sodomia. Wilde perdeu o processo e, num segundo julgamento, foi condenado por actos imorais. Pouco depois foi mandado para a prisão, caíu em desgraça e viu-se destruído por um mundo hostil que se recusava a compreender e a corresponder às particularidades do seu coração.